Responda com sinceridade – você já levou um cascudo?
Estou falando daquele cascudo bem aplicado, que começa na sua cabeça, desce dando choque pelo corpo inteiro e descarrega na sola do pé. Pois é! Foi um desses cascudos que eu levei quando tinha por volta de 9 anos de idade, na porta de minha casa, na Avenida Getúlio Vargas, em Manaus.
Quer saber como foi? Quem aplicou o cascudo? Eu vou contar…
Na idade de 8 a 10 anos, andar de bicicleta era uma das brincadeiras prediletas da meninada da minha rua. Três casas após a minha, morava Dialeda, filha do Seo Jacy, irmão do médico preferido da nossa família, Dr. Jorge Aucar, que também morava na Getúlio Vargas, mais acima de nossa casa, no trecho entre as ruas Leonardo Malcher e a Ramos Ferreira.
Dialeda era uma menina da minha idade, magra, alta e que tinha um divertimento predileto – malinar dos colegas. Era a mais alta da gurizada da rua e não temia a ninguém. Irritar ou tentar encarar a Dialeda era brincar com a sorte. Ela aproveitava-se da sua altura e usava como arma predileta o famoso cascudo.
Eu me dava bem com Dialeda. O pai dela tinha em sua casa uma bomba de encher pneu de bicicleta muito bacana e que não exigia muito esforço. Nos finais de tarde fazia fila na porta da casa do Seo Jacy para uso da tal bomba de encher pneu..
Quem brigava com Dialeda, obviamente que perdia esse privilegio, não por conta do Seo Jacy, mas por medo de levar mais cascudos enquanto enchia os pneus da sua bicicleta.
Certo dia, eu e Dialeda brincávamos com nossas bicicletas na calçada. De repente, me desequilibrei na bicicleta e a minha roda dianteira esbarrou na roda traseira da bicicleta de Dialeda.
Sem estar esperando por aquele esbarrão, Dialeda foi ao chão. Foi uma daquelas quedas que você não sabe se ri ou se socorre a vítima. Antes de beijar o chão literalmente, ela saiu catando cavaco por alguns metros. Em seguida, antes mesmo de eu esboçar um pedido de desculpas, ela já estava de pé e já havia me aplicado um tremendo cascudo.
Porra, doeu até na alma. Eu senti a energia daquele cascudo sair pela sola do meu pé. Doía tanto que eu fiquei sem qualquer ação. Enquanto isso, Dialeda já tinha pego a sua bicicleta e ido embora para sua casa. Tinha ralado feio um dos joelhos no chão cacarento da calçada.
Ainda zonzo com a porra do cascudo, peguei a minha bicicleta e entrei em casa também. Ao passar pelo portão chorando com a dor do cascudo e com raiva de Dialeda, dei de cara com mãe Rosalina e vovó Graziela conversando no pátio logo na entrada de casa. Desci as escadas com a bicicleta e, antes de chegar ao último degrau, veia a única pergunta que eu não queria ouvir naquele momento. Mamãe vendo eu com a cara de choro, indagou-me:
– O que foi que aconteceu Em-ma-nu-el? Mamãe até hoje era a única pessoa que pronunciava o meu nome como se estivesse soletrando. É diferente do Emanuel com um “m” só.
Ingenuamente, respondi: – mãe, Dialeda me deu um cascudo.
Dona Rosalina olhou séria para mim e disse:
– Presta atenção, Em-ma-nu-el. A próxima vez que você entrar por esse portão chorando por que levou cascudo de uma mulher, tu ti preparas para levar uma surra da tua mãe. Resolve teus problemas lá fora e não me entre mais aqui chorando por que apanhou na rua, principalmente de mulher. Completou o sermão mandando que eu fosse tomar banho e não sair mais para lugar algum.
Para não dar margens para mais sermão, respondi: – sim senhora! Vovó Graziela, assistindo a tudo, chamou-me, passou a mão na minha cabeça para ver se tinha algum galo e receitou: – vai passar gelo! Minha avó resolvia todos os problemas com gelo e magnésia.
O tempo passou e eu e Dialeda fizemos as pazes. Não era a primeira e com certeza não seria a última vez. Certo dia, brincávamos de manja-cola. Dialeda sai correndo atrás de mim e, ao me alcançar, em lugar de apenas me tocar com a mão como todos faziam, lascou um cascudo na minha cabeça. Continue correndo pelo menos mais um 20 metros só com a energia acumulada com o cascudo. Parei por alguns segundos e voltei correndo para casa. Abri o portão e mamãe estava sentada no pátio. Olhei muito puto para ela e disse:
– Mãe, Dialeda me deu outro cascudo, posso dar uma porrada nela?
A resposta foi no olho – Já devia ter dado!
Fechei o portão, voltei para a brincadeira e esperei o momento da vingança. Naquele tempo eu usada umas botas para corrigir defeito no pé. Eu tinha o chamado pé-chato, usava botas desconfortáveis, com palmilhas, e que tinham um bico muito duro, suficiente para incomodar qualquer canela humana.
Bem mais alta e mais forte do que eu, para atacar com sucesso a Dialeda tinha que ser por meio de um plano infalível. Falhar, nem pensar – seria fatal! Só em pensar em falhar minha cabeça latejava imaginando os cascudos de troco.
Fiquei na espreita esperando Dialeda passar distraída. Quando isso aconteceu, não perdi a chance e lasquei uma bicuda na canela dela e já fui entrando em casa gritando: – dei um chute na canela dela! Dei um chute na canela dela!
O plano de vingança tinha dado certo, mas, passava-me a exigir toda cautela dali em diante. Como voltar a brincar na calçada sem levar em conta o risco de levar outra surra de cascudos. Por precaução e medo passei alguns dias sem sair de casa. A turma chamava e eu inventava alguma coisa para não ir. O máximo que eu arriscava fazer era ficar olhando da varanda a turma brincar na calçada.
Lembro que dessa mesma varanda, longe do alcance de Dialeda, dava para ver perfeitamente a marca de mercúrio cromo em cima do local da bicuda que eu havia dado na sua canela. Naquele tempo ainda não existia o Merthiolate incolor. Deve ter doido prá dedeu e isso fazia-me sentir vingado.
Não demorou muito e fizemos as pazes outra vez. Isso aconteceu no mês de junho, quando a rua de nossa casa ganhava muita alegria com as festas juninas. A gurizada toda se reunia na porta de casa para brincar, pular fogueira e comer os quitutes da época, preparados por Vovó Graziela e por nossa segunda mãe, Dedé. Comemorávamos todos os dias importantes do período junino e, num desses dias, sempre acontecia de um grupo folclórico se apresentar na porta de minha casa, com toda a gurizada reunida. Ora, não tinha tempo melhor para fazer as pazes com Dialeda, de quem guardo com carinho e muita saudade, boas lembranças, boas recordações, com a exceção dos cascudos, obviamente.
Hoje, confesso que me sujeitaria a levar um outro cascudo, só para ter a chance do reencontro com Dialeda, para relembrar das nossas brigas e peraltices e, principalmente, para lhe dizer do quanto foi bom tê-la como vizinha e como colega de infância. Uma infância feliz vivida com outros colegas inesquecíveis da avenida Getúlio Vargas, entre a Leonardo Malcher e a Ramos Ferreira.