Eu fui AVB – auxiliar de vistoria de bagagem. Existia também o AVC – auxiliar de vistoria de carga. Não sei dizer se ainda existem essas figuras nos dias de hoje no âmbito da Receita Federal.
Nos anos 70, no auge do comércio da Zona Franca de Manaus, a Receita Federal criou as figuras dos AVBs e AVCs para ajudar os fiscais da Receita Federal a darem conta, por exemplo, das atividades de vistoria de carga e de bagagens acompanhadas nas saídas de Manaus. Era um emprego temporário de até 2 anos, salvo engano. Você tinha que passar por um exame de seleção e depois por um treinamento para conhecer a legislação aplicada e os procedimentos de rotina no processo de vistoria de cargas e de bagagens acompanhadas.
Nessa época eu já tinha 3 empregos de sobrevivência. Eu era professor de matemática e física em escolas particulares do ensino médio. Ministrava também aulas particulares que ajudavam na renda. Após ser aprovado na seleção da Receita, aceitei o desafio de ser um AVB. Não conflitava com os meus horários de aula. Aconteceu que passei a trabalhar de 12 a 14 horas nos dias de semana. Mas, foi assim que eu consegui comprar o meu primeiro carro zero. Era uma Brasília amarela com 2 carburadores. Equipei com o que tinha de melhor na época – um bom som pionner completo, teto solar, rodas de aros especiais (não lembro o nome) e bancos de couro. Um dos salários que eu recebia ia direto e inteiro para pagar a prestação do carro.
O horário de trabalho dos AVBs obedecia escalas de 6 horas corridas. Você nunca folgava no mesmo dia da semana. Meu horário era de 19 horas até 1 hora da madrugada do dia seguinte. Eu chegava em casa beirando as 2 da madrugada e 6 da manhã já tinha de estar de pé para sair e dar as minhas aulas. Naquela época, como boa parte dos AVBs eram estudantes universitários, era muito comum a boa .camaradagem para cobrir um ao outro quando era preciso, principalmente na época de provas.
No meu horário de escala havia sempre um período de calmaria, tanto na saída como na chegada de voos. Era o período que eu aproveitava para corrigir os trabalhos e as provas dos meus alunos.
Quando minha turma de AVB começou, lembro que todos os passageiros tinham as suas bagagens vistoriadas. Não escapava ninguém. Era um verdadeiro sufoco em determinados horários do dia. Quando havia necessidade de fazer alguma retenção ou apreensão de mercadoria, aí o sufoco era ainda maior, pois, o AVB além de cuidar de todo o protocolo da ocorrência, ainda tinha que ouvir os xavecos dos passageiros revoltados. Quando a reação do passageiro extrapolava, aí então não restava outra opção a não ser pedir a intervenção do fiscal de plantão ou até da policia federal em alguns casos.
Além do trabalho de vistoria de bagagens nas bancadas, também éramos colocados em pequenas ilhas que ficavam do lado de fora, no hall do aeroporto, onde orientávamos os passageiros no preenchimento das declarações de bagagens.
Ser AVB eu digo foi uma experiência fantástica, não importando se atendendo os passageiros no momento da vistoria da sua bagagem, ou no momento em que buscavam orientações para o preenchimento das suas declarações. Um coisa era certa e digo sem medo de errar – não havia um único dia igual ao outro.
Lembro que foi com a nossa turma que a Receita iniciou a experiência da vistoria decidida aleatoriamente por uma máquina. Era a alternativa para reduzir o tempo de vistoria dos passageiros e minimizar os problemas de atraso na decolagem dos aviões e que geravam conflitos entre as companhias aéreas e a Receita Federal. No momento da entrada no recinto de vistoria, o passageiro apresentava a sua declaração e era orientado a acionar um botão. Se o sinal fosse vermelho, seguia para a bancada de vistoria da bagagem acompanhada, onde as malas depois de vistoriadas recebiam um etiqueta numerada na cor vermelha. Se fosse verde, ia para uma outra bancada onde a bagagem acompanhada não era vistoriada e recebia uma etiqueta verde, o que abria a possibilidade de ser aberta para vistoria no aeroporto de destino.
Com a implantação desse processo de vistoria, aumentou ainda mais a responsabilidade dos AVBs, pois, tinham que dar conta direitinho das etiquetas e registrar a numeração das usadas no relatório ao final do expediente.
Mesmo diante da responsabilidade que era colocada nas mãos dos AVBs, com uma maioria ainda muito jovem, todos agiam com naturalidade e muita espontaneidade no cumprimento do seu dever. Todos sabíamos que estávamos ali de passagem. Era um emprego temporário, cujo salário nos ajudava muito a ter as nossas coisas. Daí, da mesmo forma que já disse que não havia um dia igual ao outro, posso dizer que esse emprego também marcou a vida de todos, onde nasceram e foram forjadas grandes amizades que vão durar para sempre.
Já se passaram mais de 40 anos e AVBs e AVCs ainda se reúnem em grupos de WhatsApp e se encontram periodicamente para conversar, trocar ideias, relembrar dos bons momentos, dar força uns aos outros, honrar a memória dos amigos que já partiram e dar muitas, muitas gargalhadas.
E que assim seja, e assim será até o último dos moicanos.
Um beijo e um cafuné na alma de todos.