Eu vou contar para os humanos a minha história. Nasci numa casa desocupada onde minha mãe e outros gatos de rua viviam em grupo e se abrigavam. Quando a noite chegava os adultos saiam para passear, namorar, mas, principalmente para caçar alimentos. Minha mãe sempre ia junto com o grupo. Precisava se alimentar para dar conta de seus filhotes gulosos. Eu era um deles.
Lembro que nem sempre todos sobreviviam após as noitadas. Alguns voltavam bem machucados, arranhados ou gravemente feridos depois de lutas ferozes em defeso do território onde vivíamos. Alguns morriam envenenados pelos humanos incomodados com a nossa presença. Outros morriam doentes ou por falta de ajuda para tratar das feridas graves resultante dos embates com os gatos de outros grupos e territórios. O certo é que não tem vida fácil para nenhum gato de rua. Dizem que nas ruas não sobrevivemos mais de 3 anos.
Fui crescendo e de repente chegou aquela hora de ter que sair para correr atrás do que comer e tocar a minha vida de gato de rua. Numa das noitadas, minha mãe saiu para caçar comida e não voltou mais. Com certeza foi vítima de alguma maldade. Em pouco tempo perdi também alguns irmãos que foram atropelados pelos carros, muito mais por descuido, por falta de experiência de sair nas ruas, do que pela maldade dos humanos.
Para entrar e sair da casa onde vivíamos fazíamos isso através de dois tubos de PVC por onde escoava a água em direção à rua nos dias de chuva. Os tubos tinham a boca grande e não havia risco de ficarmos atolados neles. As vezes acontecia de ficar sem passagem devido o lixo e as folhas das árvores que a água da chuva arrastava para dentro dos tubos, porém, nada que alguém do grupo não conseguisse resolver.
Fui sobrevivendo e aprendendo aos poucos como me defender nas ruas. Nessa luta diária pela sobrevivência, com certeza mais apanhei do que bati. A disputa por alimentos é muito grande entre os animais de rua. Certo dia, saindo para procurar o que comer, eu vi uns gatos reunidos em volta de alguma coisa. Era uma vasilha com água e outra com comida que os humanos dão para os animais e chamam de ração. Criei coragem, tentei me aproximar e tomei mais uma carreira. Daí eu ficava por ali esperando uma chance de chegar na comida, mas, quando eles iam embora não deixavam nenhum grão de ração. A fome de todos era grande e ali naquela vasilha era a única chance de encher um pouco a barriga e esperar que no dia seguinte os humanos voltassem para oferecer mais água e ração.
Comecei a prestar a atenção nos humanos que vinham colocar água e comida para os gatos de rua. Logo cedo vinha o primeiro. Saia para passear com o seu cão de estimação e trazia junto a água e a ração. Gostava de colocar na calçada logo abaixo da boca dos tubos por onde entrávamos e saíamos. Todos ficavam atentos à sua chegada e era só ele se afastar e os mais fortes apareciam para comer. Se sobrasse alguma coisa eu e outros descíamos para aproveitar a sobra.
Mais tarde aparecia o segundo humano. Ele vinha com um pote de ração, colocava uma porção numa calçada mais adiante e vinha até a boca dos tubos e completava a ração que o primeiro humano havia deixado logo cedo. Foi assim que passamos a ter comida quase todos os dias. Quando sobrava os pássaros faziam a festa logo no amanhecer.
Com o tempo os gatos do grupo começaram a perder o medo dos humanos que nos alimentavam e alguns se deixavam tocar e acariciar. No grupo havia gatos domésticos que haviam sido abandonados e esses foram os primeiros a se aproximar dos humanos e dar coragem aos outros a aceitar a aproximação. Eu sempre ficava na minha. Não queria conversa com nenhum dos dois humanos. Já tinha apanhado muito de outros gatos e levado muitas carreiras, chutes e pontapés de alguns humanos.
O segundo humano vivia insistindo em se aproximar de mim. Teve um dia que ele custou a aparecer para colocar a ração. Daí eu entrei sorrateiramente no condomínio onde ele mora e fui ficar debaixo do carro ao lado do dele. Quando ele chegou e abriu a mala do carro para pegar a ração, eu tratei de aparecer fazendo aquele alongamento para dizer – tô aqui humano,
Surpreso com a minha presença, o humano achou de colocar ração no pé da coluna da garagem dele e ficar olhando eu comer. Acabou a ração eu dei aquela miada de quero mais e ele colocou mais um pouco. Achei que tinha resolvido o meu problema. Eu não precisava mais apanhar nem ficar esperando as sobras para comer nas vasilhas lá de fora na rua. No comecinho da noite eu ia me acomodar debaixo de um carro próximo da garagem do humano e quando ele chegava eu já me anunciava para ele colocar a minha ração no pé da coluna.
Para minha contrariedade, dois gatos espertos começaram a me seguir e querer disputar a ração noturna no pé da coluna da garagem. Um gato preto metido a valente, o Negão, e uma gata de rabo cortado, a Cotilde, terrorista que sozinha batia em todo o grupo. O pau começou a cantar entre nós. Teve madrugada dos humanos acordarem assustados com o barulho infernal da briga entre gatos dentro do condomínio. Eu estava entre os brigões, sempre apanhando mais do que batendo.
O humano as vezes exagerava na ração e daí amanhecia sobras no pé da coluna da vaga de garagem. Foi dai que o humano começou a ficar encrencado por nossa causa. Os vizinhos passaram a reclamar das sobras de ração no chão da garagem e principalmente das minhas dormidas em cima dos carros, que era a maneira que eu tinha de me proteger dos gatos terroristas. Os vigilantes do condomínio quando faziam a ronda noturna, tinham ordem para me expulsar de cima dos carros, mas nunca fizeram isso maltratando.
Por conta das dormidas em cima dos carros, comecei a tomar carreira também de vizinhos do humano que nos alimentava. Um deles corria atrás de mim com uma vasilha de água. Era mais divertido do que perigoso. A encrenca piorou a ponto de um vizinho e o sub-sindico irem até o apartamento do humano que nos protegia para fazer queixas e pedir para não colocar mais ração no pé da coluna da garagem.
Apesar da bronca toda eu mantive a minha estratégia. Começo da noite eu ia me acomodar debaixo do carro mais próximo do carro do humano. Ele chegava, eu me apresentava, ele pegava a vasilha de ração na mala do carro e saia caminhando em direção da rua e eu ia atrás dele. Dessa forma eu era sempre o primeiro a comer. Pela manhã, logo cedinho, eu me plantava em frente a porta do apartamento dele.. Ficava ali disfarçadamente me esfregando na coluna, esperando ele sair e antes de ir para o trabalho deixar um pouco de ração até que ele voltasse para servir a ração da noite.
O tempo foi passando e o humano insistia numa aproximação comigo. Para não lhe desagradar eu ficava ali me roçando nas pernas das calças dele, mas nada de contato. Quando ele se abaixava para tentar me acariciar, eu pulava fora ou aplicava aquela azunhada na mão dele.
Fui ficando conhecido até pelos porteiros do Condomínio do humano. Tudo o que eles viam e ouviam a meu respeito, contavam para o humano que ficava sabendo de tudo. Por causa das minhas dormidas em cima dos carros, eles me chamavam de FOLGADO, de ÍNTIMO, até que passaram a me chamar de GUERREIRO SEM FUTURO e pegou. GUERREIRO tem tudo a ver comigo, e SEM FUTURO também tem tudo a ver com os gatos de rua que nem eu era.
O humano fez duas tentativa para me tirar da rua. A primeira tentativa ele me atraiu para dentro do apartamento dele. Eu sempre fui muito desconfiado, mas caí na estratégia do humano. Quando eu vi que ele havia me trancado dentro do apartamento, eu dei uma de gato insano e só não consegui fugir porque o apartamento é todo telado. Tentei passar pela tela, mas só passava a minha cabeça. Passei a noite trancado num quarto, pois no apartamento tem 2 cachorros shihtzus, o Hope e a Grazy, nada amigáveis com os gatos. Tem também no apartamento uma gata do nosso território, chamada de Princesa, que o humano resgatou depois que soube que queriam dar fim nela. Era da ala terrorista que entrava nos blocos do condomínio e virava as caixas de lixo atrás de comida.
No dia seguinte da minha captura, o humano me colocou dentro de uma caixa. Resisti o quanto pude mas fui parar dentro da caixa. Na hora que ele vai saindo do apartamento, dei outra vez uma de gato doido e, para a minha felicidade, a porta da caixa abriu e eu pulei fora. Morto de fome corri para debaixo de um carro. O humano não tinha me dado comida na noite anterior. O humano foi para o carro dele, pegou ração e colocou um pouco no pé da coluna. Para tirar a barriga da fome, eu precisa chegar nessa ração. Era a distração que o humano esperava para me pegar pela cintura e colocar de volta na caixa. Mas, não dei moleza não. Fui parar dentro da caixa, mas o humano ficou todo azunhado. Quando ele abriu a porta do carro a porta caixa que eu estava abriu outra vez e eu tratei de sumir.
Passei três dias escondido do humano, mas não fiquei sem comer. Tinha a ração que ele e o outro humano colocavam todos os dias lá na rua. A ração no pé da coluna da garagem era um privilégio só meu e que tinha que dividir na madrugada com os dois terroristas, o gato preto e a gata sem rabo.
Depois veio a segunda e última tentativa de me tirar da rua. Mais uma vez fui atraído para dentro do apartamento do humano. No dia seguinte fui colocado na marra dentro de uma caixa e levado para um abrigo de gatos e cachorros. Chegando lá a dona do abrigo me colocou para ficar dentro da casa dela e não junto com os outros gatos do abrigo. Ela já devia estar sabendo da minha fama.
Libertado da caixa, tratei de buscar esconderijos secretos para me manter agora longe dos humanos, dos gatos e dos cachorros do abrigo. Passava dias desaparecido, só saia nas madrugadas e só aceitava ser alimentado a distância. Observava tudo sempre muito quieto e sem dar brechas para aproximação.
Um belo dia, dei outra bobeira, fui pego e levado para uma clínica para ser castrado. Foi a primeira vez que eu acordei, já castrado, e me vi no colo de uma humana, a dona do Abrigo que tem tipo muita paciência comigo e me dado muito amor, carinho e atenção.
Passado mais um tempo fui surpreendido com a chegada no abrigo da gata sem o rabo, a terrorista COTILDE. Um tempo depois veio a gata chamada BRANQUINHA, trazida pelo mesmo humano que me trouxe para o Abrigo. Branquinha era a gata preferida do humano que sempre vinha colocar a ração e a água durante o passeio com o seu cachorro. Estamos outra vez reunidos, mas, desta vez sem brigas, bem acolhidos e protegidos da rua e dos maus tratos. Ainda assim, a terrorista Cotilde já aprontou uma das suas valentias, azunhando a orelha de um dos cachorros do abrigo. O gato Negão, de quem levei algumas peias, nunca mais ouvir falar.
Agora estou perdendo o medo dos humanos por tudo aquilo que passei nas ruas. Já ando pela casa inteira durante o dia, me esfrego gostoso e despreocupadamente nas paredes, deito na cama deles e fico os observando. Até já durmo junto sem medo de ser maltratado. Já entendi que aqui os humanos só querem dar e receber amor aos animais. Sinto que mais um pouco vou estar totalmente libertado do medo para receber muitos beijos e abraços dos humanos que me acolheram e me deram vida e proteção. Que outros gatos GUERREIROS tenham a mesmo sorte que eu, COTILDE e BRANQUINHA. A gente só quer dar e receber muito amor.
Ahhhh que história linda e bem relatada. Guerreiro e as outras são sobreviventes. Ele faz jus ao nome.
Amei e me emocionei muito, pq adoro esses bichinhos. Tenho vários, todos tirados das ruas, cada um com sua personalidade.
Ainda existem pessoas boas nesse mundo, muita luz no seu caminho sempre 🙏(Kedley)